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Breve diagnóstico da educação superior no Brasil: notas sobre autoritarismo, mercantilização e negacionismo

Everton Henrique Eleuterio Fargoni*, João dos Reis Silva Júnio**, Afrânio Mendes Catani***

*  Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Brasil; ** Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Brasil. Pesquisador do CNPq.; *** Universidade de São Paulo (USP); Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. Pesquisador do CNPq.

Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. 

Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (1989, p. 409)

De forma alegórica, principiamos com epígrafe extraída do último parágrafo do capítulo final da terceira parte da obra de Hannah Arendt sobre o totalitarismo, mais exatamente  de   “Ideologia e terror”, em que a filósofa se aprofunda na análise da consciência do indivíduo e de como se perde a confiança em si mesmo, deixando de ser parceiro dos próprios pensamentos. 

Onde está a alegoria? Simbolicamente, como Arendt, nos valeremos da solidão. Na contemporaneidade, o modus operandi imposto pelo sistema econômico no mundo todo é “produza e lucre”, com lastros utópicos de “seja feliz”. O produza, no imperativo, está entranhado na experiência diária das massas cada vez maiores; o lucrar não, o gozo do lucro pelas massas não é frequente face a predominância dos poucos que se encontram no topo da economia global. 

A solidão, neste contexto, emerge no coletivo, mesmo que as pessoas estejam cotidianamente próximas, aglomeradas e conectadas através da internet, isto é, os cidadãos não estão sós mas se sentem sozinhos e se tornam presas fáceis da retórica dos discursos “salvadores”. À medida que a maioria da população vive a rotina do trabalho alienado (cf. Marx, 1983; 1986; 1988), os diversos conglomerados humanos passam por incalculáveis transformações na subjetividade coletiva e individual. Dessa forma, com a sociedade civil desorientada, despontam déspotas com o propósito de controlar de forma autoritária as nações, por vias democráticas ou não.

A conjuntura política do Brasil no final da segunda década do Século XXI é exemplar para se compreender o afirmado no parágrafo acima. Grande parte da população encontrava-se indignada com governos anteriores, envolvidos em casos de corrupção ou conduzindo suas ações com inabilidade político-econômica. As eleições de 2018 findaram o movimento de revoltas e protestos iniciados em 2013 com as históricas Jornadas de Junho, que foram manifestações em todo Brasil, sem reivindicações claras, que seguiram numa tomada de poder simbólica quando o movimento, sem lideranças, avançou em Brasília para a Esplanada dos Ministérios, ateando fogo no fronte do Palácio do Itamaraty. Tais fatos marcaram, de forma clara e aguda, o fim do Pacto da Nova República.

Entre 2013 e 2018, através de mídias sociais e programas de entretenimento na televisão, um antigo deputado federal, ex-militar, passou a ganhar destaque por meio de entrevistas e participações com falas e frases polêmicas. Jair Messias Bolsonaro, que ingressou no circuito político em 1991, apresentou-se como alternativa à presidência já em 2014, mesmo não concorrendo a esse cargo. Para muitos ele seria um outsider figurativo e não genuíno, pois está na política há quase três décadas e integrou três de seus filhos na mesma carreira.

Bolsonaro agradou boa parte da população proferindo discursos violentos, explorando o imaginário de parcelas significativas das classes populares (conquistou sobremaneira os grupos de evangélicos neopentecostais) e o contínuo enfoque no saudosismo vivenciado durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985). Frases como “O erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabes disso. E o povo é favorável a isso também”, constituem exemplos de seu olhar particular sobre a sociedade. Discutindo com uma deputada oposicionista, bradou: “Não te estupro porque você não merece”.

Assumidamente conservador e liberal, Bolsonaro venceu as eleições de 2018 com 55,1% dos votos válidos no segundo turno contra o candidato indicado pelo ex-presidente Lula. Porém, a alta rejeição da população contra o Partido dos Trabalhadores (PT) ajudou sobremaneira sua vitória. 

O Ano Um do novo governo foi marcado por intensas discordâncias políticas com os partidos de oposição e instituições públicas, tendo embates, inclusive, com integrantes do próprio partido, do qual se desligou. Bolsonaro continuou explorando o imaginário popular, privilegiando o combate ao “comunismo”, proveniente da resistência dos partidos de esquerda ao seu governo. Entretanto, seus alvos privilegiados encontravam-se nas reformas políticas e nos ataques contra instituições públicas, como o Supremo Tribunal Federal e as Universidades Federais constituindo-se, na prática, em consolidações de intentos antigos e originários do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (1995), que introduziu mudanças econômicas de natureza neoliberal no Brasil. 

Aos  poucos Bolsonaro desencadeou a imposição da expansão significativa da esfera privada sobre a esfera pública, sendo o marco desse movimento a Reforma da Previdência, resultando na perda de direitos por meio da terceirização irrestrita, entre outras medidas, com a acentuada mercantilização das atividades humanas -situação semelhante à analisada por Bourdieu  na França em A Miséria do mundo (1993) e Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal (1998)-, quando os direitos sociais conquistados começaram a ser retirados em grande velocidade.

Nessa mesma trilha, ataques foram dirigidos contra a educação superior pública e a ciência nacionais, sendo o Projeto FUTURE-SE, apresentado pelo atual ministro da Educação, alinhado ideológica e politicamente ao Presidente, a resposta máxima para se colocar um fim ao ciclo de Reformas do Estado. Pode-se dizer que Bolsonaro colocou as Universidades e os Institutos Federais à venda, considerando-os ativos mercadejáveis. O ano de 2019 foi obscuro para o campo da educação brasileira, pois várias foram as marcas destrutivas que atingiram os quadros profissional, científico e acadêmico: bolsas de iniciação científica e de pós-graduação foram excluídas, verbas contingenciadas e ataques verbais localizados compuseram o irado cardápio da ala de extrema-direita do governo contra as universidades públicas federais e estaduais, assim como a enérgica indução para a mudança na episteme da ciência brasileira.

A precarização do trabalho nas universidades, os cortes de verbas, a fúria contra as atividades científicas e os confrontros diretos contra professores-pesquisadores dos domínios das ciências humanas deram o tom em 2019 e se agravaram neste 2020, em razão do negacionismo expresso em falas do Presidente, de ministros e parlamentares aliados. Muito desse conteúdo bélico é assimilado e reproduzido por consideráveis parcelas da população. O caso que mais chamou (e chama)  a atenção nesse sentido diz respeito à forma de enfrentamento da pandemia da Covid-19, pois o governo relativiza a potência fatal de mortalidade do vírus, sugerindo fármacos com ineficaz comprovação científica, além de negar evidências científicos claras, não adotando práticas internacionais de isolamento social e induzindo a população a ir às ruas, ao invés de protegê-la.

Em janeiro de 2019 observou-se um fenômeno inédito na educação superior brasileira: as matrículas no ensino a distância superaram as efetivadas nos cursos presenciais, denotando que o mesmo se volta, cada vez mais, para o mercado produtivo. O Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se não só consolida esta racionalidade, como também estende elementos de outras reformas maiores, como a Reforma Trabalhista e da Previdência, ao induzir a disputa por financiamento privado entre os docentes e pesquisadores, estimulando verdadeira batalha campal entre as universidades pela busca de melhores posições nos rankings a fim de atrair verbas de empresas, transformando tais instituições de educação federais em Organizações Sociais.1 Entendemos que a configuração do lócus acadêmico deixará de ter seu foco na formação humana, caminhando a passos largos para uma formação mercadológica, mediada por contratos de desempenho, estabelecimento de resultados (modelo empresarial) e venda de produtos (comercialização do conhecimento produzido), consolidando-se, assim, um modelo pragmático de empreendedorismo acadêmico.

Além das marcas negacionistas aqui esboçadas, devemos explicitar que o autoritarismo impera como força indutora de um governo que não se acanha em se destacar por meio de atos que resgatam simbolismos vinculados ao do nazismo e ao fascismo.2 Antes mesmo de Bolsonaro assumir a presidência, se sabia que sua administração seria ancorada em ideais fascistas, extremamente conservadores, populismo de ocasião, capitalismo predatório, com muito racismo e preconceitos vários. Por conseguinte, o Brasil vive em 2020 uma das maiores crises sanitárias do mundo, tendo como ministro da Saúde interino um general, com um ministro da Educação reacionário e bélico, que não logrou implementar qualquer projeto significativo, com uma profunda crise institucional e política. Enfim, um país gerido por pouquíssimas mulheres, onde o poder de mando se concentra, majoritariamente, em mãos de homens brancos, burgueses e militares. Há uma frase célebre de um humorista brasileiro, Apparício Torelly, conhecido como Barão de Itararé: “Se há um idiota no poder, é porque os que o elegeram estão bem representados”.

NOTAS

1 Regulamentadas pela Lei no. 9.637/1998, as Organizações Sociais (OS) são entidades de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades serão dirigidas ao ensino, à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico, à cultura, à preservação do meio ambiente, à saúde, dentre outras. As Organizações Sociais podem prestar serviços públicos, por meio da celebração de contratos de gestão com o poder público.

2 Secretário da Cultura de Bolsonaro imita fala de nazista Goebbels. ALESSI, G. EL PAÍS, 17 jan. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-17/secretario-da-cultura-de-bolsonaro-imita-discurso-de-nazista-goebbels-e-revolta-presidentes-da-camara-e-do-stf.html. Acesso em: 02. jun. 2020. Mensagem do governo com alusão ao nazismo agride vítimas do Holocausto.  FELLET, J. BBC, 11 mai. 2020. Disponível em:https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52626218. Acesso em: 02. jun. 2020.

Referências Bibliográficas

Arendt, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras.

Bourdieu, P. (Coord.). (1997). A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes.

___________. (1998) Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Brasil. Lei Nº 9.637, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a qualificação de entidades como organizações sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por organizações sociais, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9637.htm Acesso em: 02 jun. 2020.

Marx, K. (1983) Manuscritos econômico-filosóficos. En Fromm, E. Conceito Marxista do Homem. 8ª ed., Rio de Janeiro, Zahar.

______. (1986). As lutas de classes na França. São Paulo: Global.

______. (1988). O Capital. (Vol. 2), 3ª ed., São Paulo: Nova Cultural.